Por volta das 14 horas do dia 14 de janeiro de 1989, eu me encontrava deitado em um banco de madeira, vendo televisão, na rustica sala da casa de meus avós, na cidade de Jussara, no interior do estado de Goiás quando um grupo de meninas que queriam ir nadar, brincar e se refrescar em um riacho me chamou para ir com elas como um garoto a acompanha-las e, se preciso fosse, protege-las também.
A princípio me neguei a ir por já ter marcado um compromisso de jogar vôlei naquela tarde e não queria faltar, mas elas, as meninas, incluindo minha irmã, Angela, e prima, Nilzete, insistiram até eu concordar em acompanha-las.
Fui de bicicleta e as meninas seguiam a pé pela Avenida A até o final, quando viramos a esquerda em uma avenida com canteiro central que culminava na ponte sobre o Córrego Agua Limpa, o nosso destino. Na verdade o local da diversão ficava uns 500n metros subindo o córrego a partir da ponte, passando pela área do Canoão que tinha um lago chamado Lago das Cobras e era local de festas e parque de exposição agropecuária.
Quando chegamos ao local, uma olaria abandonada, direcionei-me para a sombra de um coqueiro, deixei lá a bicicleta, camisa, chinelos e fui a beira d’água molhar primeiro os pés como de costume. Em seguida fui chamado para brincar de pega-pega. Fizemos o sorteio para saber quem deveria sair correndo atrás dos outros e o contemplado fui eu, no entanto, antes de correr para alcançar alguém resolvi saltar de um barranco com altura de uns dois metros e meio para dentro do córrego que devia ter um metro e pouco de profundidade.
Foram três saltos de cabeça e no terceiro bati com a cabeça no fundo arenoso do Córrego Agua Limpa. O impacto fez-me desmaiar. Lembro-me, claramente, de acordar ainda debaixo d’água, boiando, tentando respirar e agonizando pela falta de oxigênio tentava também gritar por socorro e desmaiei pela segunda vez. Acordei mais uma vez e mesmo afogando lembrei de um cano que atravessava o curso da agua, tentei me segurar, não consegui e morri.
A parte que segue agora me foi contada por minha irmã e minha prima e eu digo que não cabe julgamentos ou culpas aqui.
Segundo elas, eu boiei por mais de 100 metros e elas pensavam que eu estava brincando quando se preocuparam com a demora de meu corpo emergir, então correram ate o cano que citei, minha irmã entrou na água e me resgatou completamente roxo, verificou meus sinais vitais e estava sem respiração ou batimentos cardíacos.
Houve desespero e ninguém queria se aproximar do corpo.
Minha irmã prestou os primeiros socorros com respiração boca a boca e verificava o coração até que vomitei bastante água, os batimentos cardíacos voltaram e renasci.
As meninas correram até um laticínio próximo pedir ajuda para me transportar para o hospital e um dos caminhoneiros fora ajudar mesmo que relutante. Ele também não quis se aproximar de mim e minha irmã e minha prima me colocaram sentado dentro de uma caminhonete de transporte de latões de leite.
Durante o percurso do local de resgate até o hospital eu ouvia chamarem por meu nome e ouvia choros também.
Segundo minha prima Nilzete, eu respirava com dificuldade e quando piorava chamavam por mim e a Angela fazia a respiração boca a boca da forma que podia.
Finalmente chegamos ao Hospital Municipal de Jussara e enquanto me carregavam, segurando nos braços e pernas para dentro do hospital, recobrei parcialmente a consciência e me vi deitado em uma maca, sem movimentos ou sensibilidade do pescoço para baixo enquanto um médico me espetava com agulhas e perguntava se eu sentia algo.
No período em que fiquei no hospital várias outras ações aconteciam.
Um primo de nome Donizete foi de moto em uma fazenda distante 36 quilômetros para dar a dura notícia a minha mãe, enquanto outros buscavam um transporte para me levar para Goiânia e lá ter um melhor suporte de atendimento até que conseguiram uma Caravam verde de propriedade da mulher do prefeito.
Eu deveria ser levado a Goiânia o mais rápido possível, segundo os médicos, e precisava de um acompanhante maior de idade e com condições de auxiliar caso algo ocorresse durante a viajem.
Fui colocado, deitado, na parte traseira da Caravam, ao meu lado um cilindro de oxigênio e a companhia de uma amiga chamada Alaydes que havia cursado enfermagem sempre dizendo: Não durma, Angelo! Fique acordado!
A viajem fora longa, levando-se em conta que Goiânia fica há 200 quilômetros de Jussara e quando chegamos em Goiânia já era noite, em um pronto socorro que não lembro o nome, adentramos um hospital e improvisaram um colar cervical de papelão que colocaram em mim.
Eu sentia muita dor nos ombros e pescoço. Nos serviram um jantar e eu sequer conseguia mastigar um caroço de feijão devido a dor. Foi uma das noites mais longas de minha vida.
No amanhecer do dia seguinte fui levado para outro hospital, onde fizeram um exame de ressonância magnética e ali se contataria que nunca mais eu voltaria a andar, que seria pelo resto da vida tetraplégico e que teria como companheira uma cadeira de rodas.
Fiquei nove dias em uma UTI e minha mãe me visitava todos os dias. Eu tinha medo e achava que morreria ali mesmo quando nas manhãs destes nove dias vi nove corpos sem vida saírem da UTI sem vida.
No nono dia os médicos resolveram me transferir para um terceiro hospital chamado Santa Mônica para fazerem uma cirurgia na coluna que eu não queria fazer e pedi a minha mãe que me levasse para Brasília e minha mãe e meu pai, mesmo sem condições financeiras e contra a vontade dos médicos alugaram uma ambulância e me levaram de volta para Brasília.
O que mais recordo da viagem é meu pai molhando meus lábios com um paninho para matar minha sede.
Chegando em Brasília fui levado para o Hospital Universitário de Brasília, o HUB, e ali passei uma noite na companhia de meu pai que não dormira um minuto.
Na tarde seguinte recebi a visita de amigos e logo em seguida fui transferido para o hospital Sarah Kubistchek onde fiquei internado por 18 meses, passei por 3 cirurgias e finalmente perguntei aos médicos se voltaria a andar e a resposta fora negativa.
Realmente eu nunca mais voltaria a andar e hoje, 14 de janeiro de 2014, completam-se 25 anos sem andar, sem sentir nada da clavícula para baixo, sem poder ir ao banheiro sozinho.
Esses 25 anos chamo de bodas de prata e celebro com minha prima Nilzete, minha mãe Maria e minha irmã Angela e celebro a memória da Alayde que morreu vítima da Aids, a memória do Donizete, vítima do alcoolismo e a memória de meu pai, Homero Valério de Oliveira, que sofrera um acidente idêntico ao meu e falecera no ano de 1997, mas esta é uma outra história.
Até a próxima,
Angelo Márcio.